Ao reduzir toda e qualquer "teologia" a uma mera "antropologia", Feuerbach está afirmando que a religião é apenas uma desculpa para negarmos nossa perturbadora "insignificância" diante do universo. Sobre a verdadeira razão da adoração religiosa, Feuerbach escreveu:
... a religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si mesmo. (...) o homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si antes de encontrá-la dentro de si. A sua essência é para ele objeto primeiramente como uma outra essência. A religião é a essência infantil da humanidade; mas a criança vê a sua essência, o ser humano, fora de si – enquanto criança é o homem objeto para si como um outro homem. (...) o homem adorou a sua própria essência. O homem objetivou-se, mas não reconheceu o objeto como sua essência. ³⁰
E, ainda a respeito da capacidade subjetiva de humanizar tudo o que está no mundo, ele disse o seguinte:
“(...) por isso qualquer que seja o objeto de que tomemos consciência fará simultaneamente que tomemos consciência da nossa própria essência; não podemos confirmar nada sem confirmamos a nós mesmos. (...)” ³¹
O que sabiamente Feuerbach diz é que o homem reconhece o mundo à medida que reconhece a si próprio. Por isso, tanto o sagrado, como seu oposto, o profano, são essências significadas pela capacidade subjetiva do ser humano.
A diferença entre um objeto sagrado ou profano não está propriamente no objeto, mas sim, na qualidade relacional que o homem assume diante de um objeto específico. Toda adoração é fruto de uma projeção inconsciente de nossa própria essência narcísica, ao adorar um objeto de culto, na realidade cultuamos por meio deste instrumento, certo aspecto desejável e idealizado de nosso próprio eu.
Diferentemente do homem que se vê em tudo que existe: “a visão do animal não vai além do necessário e também a sua essência não vai além do necessário” ³². É por isso que o animal não cria religião nem divide o mundo dualisticamente em uma essência profana e outra sagrada, embora exista no mundo como o homem, não se projeta para o além de sua vivência imediata.
Segundo Feuerbach, a religião foi criada pelo homem quando ele ultrapassou os limites instintivos de necessidades ordinárias e, desta maneira anômala, adentrou o campo volitivo do desejo. Assim sendo, o sagrado é apenas um outro nome para o "desejo", o instinto que se desnaturalizou como "vontade humana". Sobre isto lemos:
Tudo o que o homem deseja, que deseja de acordo como o seu estágio necessário e essencial, nisso ele crê, como foi dito isso considera ele como algo real e possível no solo em que a religião se enraíza; ele não duvida de sua possibilidade; o penhor de sua possibilidade é para ele exatamente o seu desejo. O desejo já vale para ele e por si mesmo como um poder mágico. Na língua alemã arcaica, “desejar significa o mesmo que encantar”. Na língua e na religião alemã arcaica, chama-se o deus supremo, dentre outros epítetos, também wunsch (desejo), nome com o qual o idioma antigo, diz Jacob Grimm em sua mitologia alemã, “expressava o conceito de salvação e felicidade, a realização de todas as dádivas”, e acredita que a palavra wunsch deriva de wunjo, que significa alegria, prazer (wonne) ou perfeição de todo tipo.(...) ³³
Não há como refutar o que foi dito por Feuerbach no fragmento acima. Durante toda história humana os homens transformaram os seus muitos desejos em deuses, portanto, a vontade de eternizar o prazer e, evitar magicamente desprazer, é a verdadeira razão do sagrado. Brilhantemente Feuerbach demonstra que o termo desejo é um outro nome para "Deus", ou, para ser mais exato, o seu verdadeiro nome. Por isso, qualquer promessa feita por uma divindade, é veladamente, a promessa feita pelo próprio adorador; usamos a boca dos deuses para proferir a própria voz dos nossos corações.
Mas, se Deus é o desejo humano projetado idealmente, qual o perigo de tal adoração? O grande perigo é a dissociação alienante produzida pela crença religiosa. No âmbito desta projeção, o homem não é verdadeiramente auto-consciente de seu desejo, assim, o homem se relaciona com a sua própria essência projetando-a como algo sagrado, porém, considerando-a como algo estranho, uma essência superior e diferente da sua própria essência.
O verdadeiro encontro com o sagrado para Feuerbach é a recolocação da essência do homem no próprio homem. O filósofo nega a Deus para afirmar o valor real do homem; nós não precisamos recorrer a grandeza de um ser ilusório para reconhecer nossa própria grandeza e dignidade. O ateísmo portanto, seria a religião dos “vivos”. Precisamos amar não a Deus, mas o homem; crer não no sobrenatural, mas no natural; buscar não o além, mas o aquém. Em suma, o ateísmo é a tentativa de construção de um “reino dos homens” mais humano, é a negação da ilusão dissociante de um “reino de Deus”.
Em sentido dialético, o ateísmo é a negação da negação que nega o homem pela quimera divina, o ateísmo pretende ser uma síntese. É uma teoria afirmativa que tenta restituir a essência divina do homem. O sagrado é reconduzido assim a permanecer constantemente entre os homens e, no âmbito de sua plena efetivação, dentro dos próprios homens.
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