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domingo, 30 de novembro de 2014

Ateísmo é Crença? Ou… Descrença é Crença?


Ateísmo é Crença? Ou… Descrença é Crença?

Vemos com freqüência a afirmação de que o ateísmo é uma crença e também de que as pessoas “
crêem na ciência” da mesma maneira que os crentes crêem na sua religião. O erro é tão comum, principalmente na blogosfera (até mesmo entre os céticos), que o assunto merece um tratamento particular.

Podemos perceber intuitivamente que a colocação é absurda se pensarmos da seguinte maneira: se o ateísmo é uma crença então “não acreditar em Papai Noel também é uma crença”.

Esse mal-entendido é provavelmente causado por um conjunto de razões:

1) o múltiplo sentido do verbo “acreditar” que leva a uma incompreensão do que é crença;

2) uma má compreensão do que é a ciência e como funciona o método científico;

3) dificuldade de compreender a ausência de crenças;

4) desejo de equiparar crentes e descrentes como tentativa de anular as críticas destes àqueles;

Comecemos pelo dicionário, vejamos o que diz o Aurélio
Semanticamente

descrença 1

[De des- + crença.] (prefixo des- indica ausência, falta)
1.Falta ou perda de crença; incredulidade.

crer

Verbo transitivo direto.

1.Ter por certo; dar como verdadeiro; acreditar:
“Crê apenas aquilo que a razão explica.”

2.Ter confiança em; aceitar como verdadeiras as palavras ou afirmações de:

3.Julgar, presumir, supor:
“Há cerca de um mês que não o vejo: creio que se mudou.”
Verbo transobjetivo.

4.Julgar, reputar, supor:
Verbo transitivo indireto.

5.Ter confiança; ter fé; dar crédito:
“Creio em ti, Deus” (Almeida Garrett, Folhas Caídas, p. 69)
“Creio na minha Pátria e no meu povo.” (Teixeira de Pascoais, D. Carlos, p. 18)

“O crente evangélico não teme o Purgatório, porque nele não crê” (L. Lavenère, O Padre Cornélio, p. 169).
Verbo intransitivo.
6.Ter fé, ter crença (sobretudo religiosa).

(As definições acima foram retiradas da versão online do Aurélio porém numa forma resumida, sem a maioria dos exemplos.)

A acepção nº 1 pode ser usada em sentido religioso ou não. A acepção nº 5 é mais usada no sentido religioso e a nº 6 é sua versão intransitiva. A acepção nº 3 aumenta a confusão permitindo que “crer” também signifique “supor”. Pelos exemplos vê-se que a mesma acepção do verbo é usada tanto para se dizer “creio em deus” como “creio na pátria“. Filosoficamente são coisas diferentes, envolvem posturas, intenções e estados mentais diferentes. Daí a confusão toda.

O dicionário sozinho não é suficiente para esclarecer a questão que, vê-se, ultrapassa os limites da semântica.

Analizemos então por outro ângulo…

Filosoficamente

Em princípio não é possível provar que algo não existe; podemos, no máximo, supor com algum grau de segurança que algo não existe se sua existência violar as leis naturais conhecidas. Porém, é possível provar-se que algo existe por isso o ônus da prova recai sobre quem afirma que algo existe. Portanto, manda a prudência que se permaneça neutro, aguardando provas. Se não fosse assim estaríamos todos acreditando na existência de todas as entidades mitológicas já inventadas e qualquer coisa que fosse dita seria tomada como verdade.

Por exemplo, supõe-se que o Pé-Grande não exista, que seja uma entidade mitológica. É possível, embora pouco provável, que exista um animal ainda desconhecido que tenha dado origem ao mito. A postura mais séria, comedida e responsável é presumir que tal criatura não exista pois não existem provas convincentes da sua existência.

O que é Crença?

Crer, no sentido utilizado pelos que crêem em religiões, significa “aceitar alguma coisa como sendo verdade mesmo sem prova nenhuma”. Tanto é assim que crentes se orgulham de crer sem provas, chamam isso “fé” 2. Crer é desejar que algo seja verdade. O crente deseja tão intensamente que algo seja verdade que passa a fingir que aquilo em que acredita de fato é verdade. Cria fantasias e vive nelas. Por isso o crente não está aberto a provas e rejeita qualquer argumentação contrária ao que deseja que seja verdade.

Por ter necessidade de acreditar o crente permanece teimosamente nas suas crenças e rejeita contestações e mesmo fatos que comprovam que está errado. Essa postura o leva a imaginar que a teimosia do descrente em exigir provas concretas para tudo também tem origem numa crença! Ou seja, pensa “Sou teimoso porque tenho fé. O descrente é teimoso, logo, tem fé”. O erro do raciocínio está no fato de que a fé não é a única causa possível para a teimosia 3.

Se o crente deseja que algo seja verdade é provavelmente porque tem necessidade disso e se tem necessidade é provavelmente porque não consegue aceitar um mundo que não corresponde a suas expectativas. Aparentemente o crente precisa da crença por não conseguir aceitar a realidade como ela é. Existe também outro fator: a inércia. A grande maioria foi criada assim então permanece assim – não há razão para mudar.

O descrente não deseja intensamente que o Pé-Grande não exista, não tem necessidade psicológica de que ele não exista, não precisa que se verifique a sua inexistência para ser feliz, por isso não se verifica uma situação semelhante à anterior; é totalmente incorreto dizer-se que “acreditamos na inexistência de tal criatura” e que, portanto, a postura cética é uma crença – pelo menos enquanto se usa o verbo “acreditar” no mesmo sentido que o religioso. A postura cética é uma postura de quem aguarda provas irrefutáveis e que, agindo assim, defende a verdade.

É como se, incapaz de aceitar a morte como um fato, uma pessoa passasse a negá-la, afirmando que viverá para sempre. Este exemplo provavelmente não se verifica na prática pois é facilmente constatável que a morte é um fato. Alguém que afirmasse que a morte não ocorre seria chamado de louco. Contudo, o exemplo não é totalmente irreal, pois diante da impossibilidade de negar a morte algumas pessoas contornaram o problema inventando uma vida após a morte. Conseguem assim negar a morte. (O ser humano é mestre em distorcer fatos e definições para que se adeqüem a seus desejos!)

É o medo de morrer, o medo do desaparecimento total, que estimula nossa mente a criar fantasias 4 do que poderia ser e, num passo seguinte, passar a ver esse desejo como verdade.

Esse auto-ilusionismo funciona melhor ainda se essa pessoa estiver junto de outras que compartilham os mesmos desejos; tudo fica mais fácil e um dá apoio ao outro, quando um fraquejar na auto-enganação os outros podem ajudá-lo a voltar “para o caminho da fé”. Pois isso é a fé: o desejo intenso de que algo seja verdade. Quanto mais uma pessoa consegue acreditar nas fantasias que criou maior é a sua fé.

Para o crente, o melhor dos mundos seria que todas as pessoas tivessem as mesmas fantasias pois tudo seria mais fácil – uma histeria coletiva. Nesse contexto a existência de pessoas que rejeitam as fantasias do grupo constituem uma ameaça. É provável que muitos crentes, no fundo, saibam que se enganam e a existência de descrentes os lembra disso. Os descrentes podem levar alguns crentes a pensar, se pensarem verão que suas crenças não passam de fantasia; os descrentes os acordam do sonho e os chamam à realidade. “São uma ameaça. Convertê-los é preciso. Combatê-los, se necessário.” Os combatentes, claro, são vistos como heróis.

Crer é fazer das suas fantasias a sua realidade particular. O crente vive num mundo idealizado por escolha própria, tem profunda necessidade disso e, talvez por isso, tenha dificuldade de entender um mundo sem crenças – veja-se por exemplo esta frase colhida de um blog: “Mas não consigo conceber alguém que não tenha uma própria “crença” acerca de uma “força superior”“. Se o crente não entende a ausência de crenças pensará que a descrença é também uma crença. Por outro lado, supor a existência de um deus é diferente de crer num deus, assim como é possível supor-se a existência de um animal que tenha dado origem ao mito do Pé-Grande mas isso não é fé religiosa, é suposição.

Vivendo no mundo das suas queridas e acalentadas fantasias o crente se sente seguro, protegido e feliz. E daí vem sua conclusão de que os que não vivem no mundo de fantasias são infelizes. Mas aqui já entramos no terreno do subjetivo. É possível determinar se algo é verdade ou não mas não se pode determinar se é melhor viver conhecendo a verdade ou viver na ilusão. Isso já é uma questão de preferência pessoal 5.

Aceitar que se vive num mundo de fantasias é algo extremamente doloroso para os crentes pois implica em aceitar que seus pais mentiram, e que eles próprios mentiram a seus filhos, e que todos os seus entes queridos desaparecerão e também eles, e que portanto jamais se encontrarão de novo. A idéia do desaparecimento total e suas implicações é horrível, concordo. Mas se o desaparecimento total for um fato, viver num mundo de fantasia não irá mudar a realidade.

Resumo
Crente
Descrente
Deseja que sua idealização seja verdade
Deseja encontrar a verdade
Aceita afirmações sem provas
Exige provas concretas
Idealiza o mundo a priori
Descobre o mundo e o aceita como ele é; permanece neutro enquanto isso não ocorre
Não aceita contestações
As contestações o ajudam a descobrir a verdade
Rejeita fatos que comprovam que está errado
Fatos e provas levam à verdade

_

O quadro acima resume as diferenças na postura de crentes e descrentes deixando mais clara a diferença entre “crer” e “descrer“.

Conclusão
“Descrença” significa “ausência de crenças” e não “crença na inexistência do objeto da crença”. Afirmar que o ateísmo é uma crença é um argumento que se baseia na ambiguidade da palavra “crer” e é, portanto, um erro de raciocínio – um equívoco (falácia da ambiguidade).



“I maintain there is much more wonder in science than in pseudoscience. And in addition, to whatever measure this term has any meaning, science has the additional virtue, and it is not an inconsiderable one, of being true.”
Carl Sagan



Notas
1) Evitei o uso da palavra “ateísmo” na maior parte do texto por ser este um caso particular de “descrença”.
2) “O que é fé? Fé é ter a possibilidade de crer naquilo que você não vê, porque se você vê deixou de ser fé. Por isso que eu às vezes questiono muito alguns modelos de religião onde tudo é muito explicado, tudo é muito claro, tudo é muito limpo, tudo é muito justificado. Não, a fé ela nasce justamente daquilo que a gente não consegue ver.” – Pe. Fábio de Melo.
“Em Hebreus capítulo 11 diz que a fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê.” – Pe. Marcelo Rossi.
Veja também um curioso argumento circular:
“Pela fé cremos ser verdadeiro o que nos foi revelado por Deus e o cremos não pela intrínseca verdade das coisas, percebida pela luz natural da razão, mas pela autoridade do mesmo Deus que se revela que não pode se enganar, nem nos enganar.” – Pe. Joãozinho (queemm?!) – Mas como sabe que aquilo em que crê pela fé foi de fato revelado por deus? – Pela fé!
3) Para quem gosta de Cálculo Sentencial:
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Trata-se da bem conhecida falácia da “Afirmação do Conseqüente”. Mais detalhes na minha Apostila de Cálculo Sentencial e Cálculo de Predicados (é grátis! ;) ).
4) As causas da religião são um pouco mais complexas e são analisadasaqui.
5) Cabe aqui porém uma discussão ética – temos o direito viver de acordo com nossas próprias convicções; mas até que ponto podemos impô-las às crianças?


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