Um terceiro impulso psicológico
contido na religião é aquele que levou a concepção da virtude. Sei que muitos
livres pensadores encaram tal concepção com grande respeito, afirmando que a
mesma deveria ser preservada apesar da decadência da religião dogmática. Não
posso concordas com este ponto de vista. A análise psicológica da ideia de
Virtude parece mostrar-me que a mesma tem suas raízes em paixões indesejáveis e
que não deveria ser fortalecida pelo imprima tur da razão.
A virtude e a falta de virtude
devem ser consideradas conjuntamente: é impossível salientar-se uma coisa sem
que se saliente também a outra. Mas o que é a ‘falta de virtude’ na pratica?
É, na prática, uma conduta que não
agrada ao rebanho. Chamando-a de ‘Falta de Virtude’ e elaborando um sistema
moral complicado em torno de tal conceito, o rebanho se justifica aos seus
próprios olhos ao infligir castigo aos objetos de seu próprio desagrado, ao
mesmo tempo em que, já que o rebanho é virtuoso por definição, isso exalta
também o seu amor-próprio, no momento mesmo em que liberta o seu impulso para a
crueldade.
Eis aí a psicologia do
linchamento, bem como das outras maneiras pelas quais os criminosos são
punidos. A essência da concepção da virtude, por conseguinte, é proporcionar
uma saída para o sadismo, apresentando a crueldade sob o manto da justiça.
Mas, dir-se-á, a descrição que
vindes fazendo da virtude não se aplica, de modo algum, aos profetas hebreus,
os quais, afinal de contas, segundos vossas próprias palavras, inventaram tal
ideia. Há verdade nisso: a virtude, na boca dos profetas hebreus, significava
aquilo que era aprovado por eles e por Jeová. Encontramos está mesma atitude
expressa no Ato dos Apóstolos, onde os Apóstolos começam um pronunciamento com
as palavras : ‘ Porque pareceu bem ao Espírito Sando e a Nós’ (Atos XV, 28).
Está espécie de certeza individual quando aos gostos e opiniões de Deus não
pode, porém, constituir a base de nenhuma instituição. E essa sempre foi a
dificuldade que o protestantismo teve de enfrentar: um novo profeta podia
afirmar que a sua revelação era mais autentica que a de seus predecessores, e
nada havia, no panorama geral do protestantismo, que mostrasse que tal
reinvindicação não era válida. Por conseguinte, o protestantismo dividiu-se em
inúmeras seitas, que enfrentavam uma as outras - e há razão para se supor que, daqui a cem
anos, o catolicismo será o único credo a representar efetivamente a fé cristã.
Na Igreja católica, a inspiração,
tal como era desfrutada pelos profetas, tem o seu lugar; mas, reconhece-se,
certos fenômenos que se assemelham a verdadeiras inspirações divinas podem ser
inspirados pelo diabo e, assim, cabe a Igreja descrimina-los, exatamente como
compete a um conhecedor de arte distinguir um Leonardo autêntico de uma
falsificação. Desse modo, a revelação se torna, ao mesmo tempo, uma coisa de
instituição. Certo é aquilo que a Igreja aprova, e errado, o que desaprova.
Assim, a parte efetiva da concepção daquilo que é certo não passa de uma
justificação de antipatia por parte do rebanho.
Dir-se-ia, pois, que os três
impulsos humanos contidos na religião são o medo, a presunção e o ódio. O
propósito da religião, poder-se-ia dizer, é dar um ar de respeitabilidade a
essas paixões, contanto que elas sigam determinados canais. E porque tais
paixões contribuem para a infelicidade geral, é que a religião é uma força para
o mal, já que permite aos homens entregarem-se a essas paixões sem restrição
alguma, quando, não fosse pela sua sanção, poderiam, pelo menos, até certo
grau, refreá-las.
Posso bem imaginar a está altura,
uma objeção não por parte dos crentes mais ortodoxos, mas não obstante, digna
de ser examinada. O ódio e o medo, poder-se-ia dizer, são características
humanas essenciais: a humanidade sempre os sentiu e sempre os sentirá. O melhor
que se pode fazer a respeito, poderão dizer-me, é dirigi-las para certos
canais, nos quais são menos prejudiciais do que em outros.
Um teólogo cristão poderia afirmar
que a Igreja trata desse problema de maneira análoga aquele com que encara o
impulso sexual, que é por ela deplorado. Procura tornar a concupiscência
inócua, confinando-a aos limites do matrimônio. Assim, poder-se-ia dizer, se a
humanidade deve, inevitavelmente, sentir o ódio, é melhor dirigir tal ódio
contra aqueles que são realmente nocivos, e é precisamente isso que a Igreja
faz por meio de sua concepção de virtude.
Quanto a essa alegação, há duas
respostas: uma, relativamente superficial; outra que atinge o âmago da questão.
A resposta superficial é a de que a concepção da Igreja, quanto a virtude, não
é a melhor possível; a resposta fundamental é a de que o ódio e o medo, podem,
com nosso conhecimento psicológico atual e com a técnica industrial de hoje,
ser inteiramente eliminados da vida humana.
Tomemos, primeiramente, o primeiro
desses pontos. A concepção da Igreja, quanto a virtude é, sob vários aspectos,
socialmente indesejável: em primeiro lugar e antes de mais nada, por
menosprezar a inteligência e a ciência. Este defeito é herdado dos Evangelhos.
Cristo di que devemos ser como as criancinhas, mas as criancinhas não podem
compreender o cálculo 30 diferencial, os principais monetários ou os métodos
modernos de combate as enfermidades. Adquirir tais conhecimentos não faz partir
de nosso dever, segundo a Igreja.
A Igreja não mais afirma que o
conhecimento, em si, seja pecado, embora tenha feito em sua época de triunfo e
glória; mas a aquisição do conhecimento. E embora não constitua pecado, é
perigosa, já que pode conduzir ao orgulho do intelecto e daí, a indagações
quanto ao dogma cristão.
Tomemos por exemplo, dois homens,
um dos quais haja exterminado a febre amarela em grandes regiões tropicais, mas
que, no decurso de seu trabalho, haja tido relações ocasionais com mulheres com
as quais não era casado, enquanto que o outro permaneceu ocioso e inútil,
gerando um filhos por ano até matar a esposa de exaustão e revelando tão pouco
cuidado com os filhos que a metade deles morreu devido a causa evitáveis, mas
que jamais se entregou a qualquer relação sexual ilícita. Todo cristão deve
afirmar que o segundo desses homens é mais virtuoso que o primeiro. Tal atitude
é, por certo, supersticiosa e inteiramente contrária a razão. Não obstante,
algo deste absurdo é inevitável, enquanto o ato de evitar-se o pecado for
considerado mais importante do que o mérito positivo, e enquanto a importância
do conhecimento como ajuda a uma vida útil não for reconhecida.
A Segunda e mais fundamental
objeção à utilização do medo e do ódio, tal como é praticada pela Igreja, é que
tais emoções podem hoje ser quase que inteiramente eliminadas da natureza
humana mediante reformas políticas, econômicas e educacionais. As reformas
educacionais devem constituir a base, pois que os homens que sentem ódio e medo
também admirarão essas emoções e desejarão perpetua-las, embora essa admiração
e esse desejo seja, provavelmente, inconscientes, como ocorre com o comum
cristão.
Um plano educacional destinado a
eliminar o medo não é, de modo algum, difícil de criar-se. Basta apenas que se
trate a criança com bondade, que a coloquemos num ambiente em que seja possível
a iniciativa sem resultados desastrosos, evitando que a mesma tenha contato com
adultos que sintam terrores irracionais, como o terror da escuridão, de
camundongos ou da revolução social. A criança tampouco deve estar sujeita a
castigos severos, ameaças ou censuras graves e excessivas. Livrar-se a criança
do ódio é algo um tanto mais complicado.
Devem ser cuidadosamente evitadas
as situações que despertem inveja, mediante exata e escrupulosa justiça entre
crianças diferentes. A criança deve sentir-se objeto de carinhoso afeto por
parte ao mesmo de alguns dos adultos com os quais tem contato, e não deve ver
frustradas suas atividades e curiosidades naturais, salvo quando isso
constituir perigo para a sua vida ou a sua saúde. Não deve, em particular,
existir qualquer tabu quanto ao conhecimento sexual, ou quanto a conversação
sobre assuntos que as pessoas convencionais consideram impróprios. Se tais
preceitos forem observados desde o começo, a criança será destemida e cordial.
Ao entrar na vida adulta, porém a
criança assim educada, quer seja menino ou menina, ver-se-á mergulhada num
mundo cheio de injustiças, de crueldade e de evitável sofrimento. A injustiça,
a crueldade e o sofrimentos existentes no mundo moderno são heranças do
passado, sendo de caráter econômico a sua fonte básica, pois que a competição
de vida e morte quanto aos meios subsistência era, em outros tempo, inevitável.
Mas não é inevitável em nossa época.
Com a técnica industrial moderna
podemos, se assim o desejarmos, proporcionar a todos uma subsistência
tolerável. Poderíamos, ainda, fazer com que a população do mundo se mantivesse
estacionária, se não fossemos impedidos pelas influências políticas das Igrejas
que, ao controle de natalidade, preferem a guerra, as pestes e a fome. Existe o
conhecimento segundo o qual se poderia assegurar a felicidade universal; o
principal obstáculo a sua utilização nesse sentido são os ensinamentos
religiosos.
A religião impede que as nossas
crianças tenham uma educação racional; a religião impede que nos afastemos as
causas fundamentais de guerra; a religião impede que ensinemos a ética de
cooperação científica, em lugar das antigas e ferozes doutrinas do pecado e do
castigo. É possível que a humanidade se ache no limiar de uma idade de ouro;
mas, se assim é, será primeiro necessário matar o dragão que monta e guarda a
porta – e esse dragão é a religião.
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